A saga para comprar cloroquina para minha avó com artrite: 21 ligações e muitos 'não sei'

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Sem cloroquina, minha avó Maria Alves sente dores terríveis.

Reprodução: Acervo pessoal/Juliana Coin

Minha avó, Maria Alves, 80 anos, faz uso de hidroxicloroquina há cerca de um ano para tratar artrite reumatoide, uma doença autoimune que provoca inchaços, rigidez e dores nas juntas. Era simples: como qualquer outro medicamento vendido sob prescrição, bastava apresentar a receita para adquirir o remédio que vem em uma cartela de 30 comprimidos.

Todos os meses, encontrávamos a medicação disponível nas farmácias de Guaíba, na região metropolitana de Porto Alegre. Mas, em meados de março, quando Bolsonaro exaltou que a hidroxicloroquina era a salvação para a covid-19, tudo mudou. A medicação começou a sumir das prateleiras, até ter a venda restringida por determinação da Anvisa. Desde então, comprar uma caixa de remédios se tornou uma saga.

Quando a corrida pela cloroquina começou, nos alarmamos. Sem o remédio, minha vó sente dores tão fortes que precisa ser internada para tomar medicação intravenosa. Entramos em contato com as farmácias de costume logo que as notícias começaram a surgir, e recebemos a informação que os estoques já haviam sido recolhidos. O Conselho Federal de Farmácia registrou um crescimento na compra de hidroxicloroquina comparando os meses de janeiro a março de 2019 com o mesmo período deste ano, destacando um aumento de 67,93% nas vendas. Importante reforçar: a medicação não tem comprovação de eficácia no tratamento de covid-19. Em 28 de março, orientada pelos farmacêuticos de redes privadas que não tinham a medicação em estoque, minha mãe, Rosana, entrou em contato com a Unidade Básica de Saúde, a UBS Columbia City, de Guaíba: “não queria a medicação de graça, queria comprar mesmo. Só precisava saber onde”.

Como minha avó tem plano de saúde, foi solicitado pela atendente da UBS que a gente levasse os exames até a médica da unidade para avaliar a necessidade do medicamento. Mas a  maioria dos resultados fica com o médico particular em Porto Alegre, que não estava atendendo desde o início da pandemia. Não tínhamos como ter acesso aos exames. Outra questão é que, mesmo apresentando os exames, a UBS Columbia City forneceria apenas a receita, o que também não era o nosso problema. Precisávamos do remédio. Tínhamos tudo, menos o mais importante: a cloroquina.

Para tentar entender quem poderia dar informações sobre a medicação, minha mãe entrou em contato com a Assistência Social de Guaíba, que não soube informar onde comprar o remédio. “Liga para a Secretaria de Saúde de Guaíba”, disseram. A secretaria indicou entrar com um processo para que o remédio fosse adquirido gratuitamente, mas nosso problema não era a falta de recursos para comprar o remédio – era descobrir onde havia para comprar. Nós precisávamos saber qual farmácia tinha estoque. Esse processo levou cerca de um mês, desde o início da busca até pararmos de apenas seguir as orientações das instituições e começar a fazer outros contatos.

Nesse meio tempo, a cartela com 30 comprimidos minguava. Foi uma corrida contra o tempo. Para que minha avó não ficasse sem a medicação, estipulamos um racionamento do que ainda tinha na cartela a despeito da orientação médica. Ela começou a tomar em dias intercalados, o que fez com que sentisse mais dores nas juntas do que quando medicada.

A tensão e o medo a cada comprimido que diminuíam da cartela eram sentidas por todos na casa. Interná-la caso as dores piorassem muito se tornou uma angústia, já que alguns hospitais estão dedicados aos pacientes suspeitos da covid-19, além do risco de contaminação. Imagine uma mulher idosa, com artrite, portadora de doença broncopulmonar obstrutiva crônica, hipertensa, diabética em um hospital em Porto Alegre, centro da epidemia no Rio Grande do Sul. Não é um cenário que deixe uma família tranquila.

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Cloroquina sumiu das farmácias após presidente incentivar seu uso contra a covid-19.

Reprodução: Acervo pessoal/Juliana Coin

A Secretaria de Saúde Municipal disse não ter informações sobre estoques das farmácias. Então, sem nenhuma orientação, a partir do dia 15 de abril minha mãe entrou em contato com a Vigilância Sanitária Municipal, que também não soube informar onde o remédio era vendido, mas deu novas direções: dois novos números, um da Vigilância Sanitária do Estado e outro da ouvidoria do SUS. O contato do SUS não funcionou. A ligação chamava e ninguém atendia.

As ligações foram feitas repetidas vezes, mas o resultado era sempre o mesmo. Pesquisando na internet, minha mãe encontrou outro telefone, que levava a um setor de hospitais do SUS. Ligando, foi novamente transferida, tendo dois novos contatos de departamentos que talvez – e apenas talvez – pudessem informar onde comprar o remédio.

“Todas as pessoas que me atendiam pareciam estar atônitas, não sabiam onde ou o que fazer comigo. Elas pareciam não ter instruções, como se fosse algo novo para os atendentes”, me contou minha mãe depois das primeiras ligações, no dia 28 de março.

Os telefones do SUS não funcionaram. Então, utilizando o contato 136, fornecido pelo Ministério da Saúde para atendimentos relacionados ao coronavírus, foi aberta uma reclamação sobre a dificuldade de adquirir a hidroxicloroquina. Antes de receber o resultado do protocolo aberto, minha mãe resolveu ligar para o fabricante do remédio que havíamos comprado no mês de fevereiro, a empresa farmacêutica Apsen.

Todas as pessoas que me atendiam pareciam estar atônitas, não sabiam onde ou o que fazer comigo. Elas pareciam não ter instruções, como se fosse algo novo para os atendentes.
 

Os atendentes da Apsen verificaram em seu sistema quais drogarias do Rio Grande do Sul tinham permissão a comercializar a droga. Foi assim que descobrimos que cinco drogarias recebiam a medicação. Entretanto, apenas seria vendido sob uma receita de controle especial que, como diferença de um receituário normal, deve ter duas vias: uma fica retida na farmácia, identificando a pessoa que comprou, os dados da pessoa que usa o remédio e a validade da receita que é de apenas 30 dias.

No dia 16 de abril, quase um mês depois de a saga começar, conseguimos a receita especial apresentando as receitas antigas que possuíamos aos atendentes do Centro Clínico Gaúcho, o CCG. Só então fomos conseguimos ir até a farmácia com a receita necessária. Porém, outra informação nos deixou apreensivos: “Deu sorte que tínhamos no estoque”, reforçou o farmacêutico.

Nós vamos enfrentar essa corrida pela hidroxicloroquina todo mês. Só depois de obter uma nova receita especial, a cada 30 dias, poderemos ligar para as drogarias que recebem o medicamento para saber se há no estoque, e então poderemos comprar a medicação. Caso ela esteja lá.

O que aconteceu com a minha avó não foi exceção. O Grupo de Pacientes Artríticos de Porto Alegre e a Associação de Lúpus e Outras Doenças Reumáticas do Vale dos Sinos, a Alureu Sinos, me disseram que isso ocorrem com muitos pacientes. “Muitos estavam em desespero porque não encontravam o medicamento. Ficamos realmente apavorados”, me contou Izabel Oliveira, presidente e fundadora da Alureu Sinos. Minha avó sofreu de dores nas costas, nos braços e inchaços nos pés pela divulgação descabida de informações falsas e um estímulo irresponsável do presidente ao uso de algo sem comprovação científica para a covid-19. 

No dia 21 de abril, cinco dias depois de encontrarmos o remédio por conta própria e a despeito da falta de informações dos órgãos públicos, a ouvidoria do SUS finalmente retornou. E a resposta, caso tivéssemos esperado, não ajudaria em nada. A mensagem não respondeu nossas dúvidas sobre quais farmácias tinham estoque do remédio. E caso nós fossemos fazer a solicitação da cloroquina gratuitamente, quanto tempo levaríamos até conseguir o remédio? Não sabemos.

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Fonte: https://theintercept.com/2020/05/21/coronavirus-cloroquina-bolsonaro/
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