Tráfico toma conta, e violência mata tanto quanto o coronavírus na periferia de Fortaleza

Movimentação no Cemitério Parque da Paz, em Fortaleza (CE), que teve um aumento na demanda de funerais em decorrência da pandemia do novo coronavírus (covid-19).

Movimentação no Cemitério Parque da Paz, em Fortaleza, registrou um aumento na demanda de funerais em decorrência da pandemia do novo coronavírus.

Foto: Fábio Lima/O Povo/Folhapress

Há muitos empresários preocupados com a perda de lucros durante a quarentena imposta pela covid-19. Com o comércio de drogas não é diferente. No Ceará, traficantes do Comando Vermelho e Guardiões do Estado continuam disputando a bala as regiões para onde querem expandir seus negócios. A violência não cedeu com a pandemia.

Bairros da periferia de Fortaleza, na região norte da capital, concentram não apenas a letalidade por homicídios, mas também por covid-19. Os bairros que compõem a Regional I têm a maior letalidade por coronavírus de Fortaleza, 14,4%. É na região que houve também o maior número de mortes violentas em abril, motivados principalmente pela disputa entre facções.

A violência é concentrada em certas regiões – não há novidade nisso. Em geral, Ceará tem registrado queda nos homicídios. Analisando os dados de segurança pública do estado em 2019, uma coisa me veio à cabeça: São Paulo. E de um jeito bem peculiar: como o governo paulista no passado, o cearense está surfando politicamente a onda da redução de homicídios, causada em grande parte por decisões do tráfico e não por iniciativas governamentais.

O Ceará, que poucos anos atrás era conhecido por sua calmaria, virou de cabeça para baixo e hoje é disputado palmo a palmo por quatro facções: a paulista Primeiro Comando da Capital, o PCC; a fluminense Comando Vermelho, CV; a cearense Guardiões do Estado, o GDE; e a amazonense Família do Norte, FDN. O Nordeste é uma importante rota para escoar drogas para a Europa.

Apesar de rivais, as facções se uniram no início de 2019 contra o governo do estado após uma fala pública do secretário de Administração Penitenciária, Luis Mauro Albuquerque, escolhido pelo governador reeleito petista Camilo Santana para assumir a pasta recém-criada. Em seu primeiro discurso no cargo, em 2 de janeiro, ele prometeu que não haveria mais a separação de presos no sistema prisional. Até então, as cadeias eram divididas por membros de cada grupo, uma resposta aos ataques feitos em 2017 no Ceará, após execuções dentro dos presídios no Amazonas, durante disputa entre o CV e o PCC.

A contraofensiva do tráfico foi imediata. Em um mês, houve 283 ataques a ônibus, prédios e outros pontos perpetrados por facções em todo estado. De acordo com o Sistema Jangadeiro de Comunicação, os ataques ocorreram em 56 dos 184 municípios do estado – 134 deles na capital Fortaleza. Em setembro, a situação se repetiu e houve outros 95 ataques na cidade e outros 16 municípios do Ceará, com a reivindicação de melhor tratamento nos presídios.

O chefe da Guardiões do Estado, Ednal Braz da Silva, conhecido como ‘Siciliano’, a advogada Elisângela Maria Mororó e outras 21 pessoas viraram réus no fim de abril acusados de planejar atentados contra o estado e ações correlacionadas, como incêndio e danos.

União fez a força – política

A união e o pacto de não agressão entre facções fizeram com que, apesar do aumento da violência urbana, o número de homicídios caísse 56% nas duas semanas seguintes ao pronunciamento de Albuquerque. No total, janeiro de 2019 fechou com 192 homicídios contra 482 em 2018. No acumulado do ano, houve redução de 51%. Já em janeiro deste ano, houve um aumento de 38% em relação ao ano passado: foram 265.

No fim do ano passado, o secretário de segurança comemorou o feito: “Todos nós da Segurança Pública estamos muito confiantes no trabalho que vem sendo feito e confiantes também que terminaremos o ano com o menor número de homicídios de toda a série histórica. Certamente, o trabalho que vem sendo conduzido aponta para esse grande resultado, o que levará o Ceará a alcançar um dos melhores patamares de toda uma década”.

O governador petista também ficou feliz. “Vamos parabenizar os profissionais de segurança pública. Isso é fruto do esforço e do trabalho de toda uma equipe que se dedica ao povo cearense”, disse Camilo.

A sensação de “já vi esse filme antes” foi inevitável.

Pessoas se aglomeram em grandes filas para receber o auxílio emergencial disponibilizado pelo Governo Federal na Caixa Econômica Federal na avenida H, bairro conjunto Ceará com Fortaleza.

Pessoas se aglomeram em grandes filas para receber o auxílio emergencial disponibilizado pelo governo federal na Caixa Econômica Federal na Avenida H, em Fortaleza.

Foto: Mateus Dantas/Zimel Press/Folhapress

Em 2015, o índice de homicídios em São Paulo ficou abaixo de 10 por 100 mil habitantes pela primeira vez desde 2001. O governador da época, o tucano Geraldo Alckmin, comemorou o feito como exclusivamente seu. “Isso não é obra do acaso. É fruto de muita dedicação. Policiais morreram, perderam suas vidas, heróis anônimos, para que São Paulo pudesse conseguir essa conquista”, disse ao portal Terra, na ocasião.

Pesquisadores foram enfáticos: o PCC tinha mérito na redução das mortes. “A regulação do PCC é o principal fator sobre a vida e a morte em São Paulo. O PCC é produto, produtor e regulador da violência”, disse o canadense Graham Willis, à BBC, o que havia sido dito anos antes por pesquisadores brasileiros, que reiteravam “um possível papel do fortalecimento do crime organizado, que passaria a funcionar como um novo mecanismo de controle social, mediando os conflitos locais, também vem sendo apontado através de estudos etnográficos como sendo responsável pela queda dos homicídios em São Paulo”.

Trocando em miúdos, o PCC “pacificou” São Paulo. Acabaram-se as rixas por áreas (alô, monopólio!), brigas internas e externas, a exibição ostensiva de armas. A dura hierarquia da facção e as regras rígidas não permitem lobos solitários tomando decisões à revelia dos chefes. Sem salve, sem permissão. A união do “sindicato” mostrou o efeito de um controle feito de forma não ostensiva. Há menos tiroteios, menos polícia e mais lucro. Para quem lembra: o conceito de estratégia, em grego, strateegia; em latim, strategi; em francês, stratégie.

O caso do Ceará segue a mesma lógica.

Política lucrativa

Ceará tem sido um bom exemplo de como a política de segurança pública é lucrativa politicamente. Há pouco tempo, o motim dos policiais militares no Ceará foi também disputado por políticos. Moro, Cid Gomes, ex-governador do estado e hoje senador, o ex-deputado federal Cabo Sabino, que está foragido, esticavam a corda diante do governador, Camilo Santana. E houve ainda os dedos do deputado estadual Capitão Wagner, que em 2016 foi ao segundo turno na eleição à prefeitura de Fortaleza e desponta como favorito para o cargo este ano.

Após o motim, a violência no Ceará escalou. O número de assassinatos mais que dobrou dali em diante, passando de 356 para 717. O ano de queda representado por 2019 deu lugar a um 2020 com o fevereiro mais violento desde pelo menos 2013. Em abril, a violência segue em alta mesmo em meio a uma pandemia que exige isolamento social.

Segurança pública deve ser política de estado, não de governo. Quando a política é bandeira de um governador, com ciclo de quatro em quatro anos, as estruturas que permitem o afloramento da violência permanecem intocadas.

É essa falta de planejamento de longo prazo permite que outsiders da política – no caso, traficantes – exerçam um papel tão importante na redução de homicídios. E quem aproveita isso como propaganda gratuita? Pois é. Por isso, estamos onde estamos. É por voto, não por segurança.

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Fonte: https://theintercept.com/2020/05/05/coronavirus-fortaleza-mortes-violencia/
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