Se derrubássemos estátuas por aqui em protestos, nos chamariam de vândalos e não de heróis

Em 2017, uma petição surgiu na internet pedindo a retirada do monumento em homenagem a Edward Colston do centro da cidade de Bristol, Inglaterra. Na última atualização, constavam mais de 11 mil assinaturas. A discussão surgiu com força após o confronto violento entre supremacistas brancos e antifascistas em Charlottesville, Estados Unidos, que também teve uma estátua como estopim.

Na Wikipédia, consta que Colston foi “o grande benfeitor de Bristol” por causa de suas doações para a construção de escolas, hospitais, igrejas e associações de caridade. Um homem generoso e humanista, qualquer um diria. Mas bondade sem dinheiro raramente rende uma estátua no centro de uma cidade, e o que gerou a petição foi o desconforto ligado à origem da fortuna de Colston.

No século 17, o “grande altruísta” se tornou sócio da Royal African Company, a RAC, empresa britânica que detinha o monopólio do comércio em torno da captura e tráfico de escravos. Mais de 84 mil africanos foram escravizados com participação direta da companhia na época em que Colston também lucrava com ela. E não era só ele. Diversos homens notáveis foram sócios da organização escravista – entre eles, John Locke, um dos mais influentes pensadores do iluminismo, considerado o “pai do liberalismo” (Locke depois parece ter ‘mudado de ideia’ sobre a escravidão em seus escritos). A RAC não durou muito, pois a concorrência, principalmente a portuguesa (responsável pelo tráfico que trouxe os mais de 4 milhões de africanos escravizados ao Brasil), levou a empresa à falência

Três anos após Charlottesville, a petição e notas de repúdio sobre à estátua do escravista, um grupo presente no protesto do Black Lives Matter decidiu resolver tudo com as próprias mãos e, no domingo, 7 de junho, todos nós assistimos ao feito. Em vídeo, diversas pessoas derrubaram a estátua de seu pedestal e a arrastaram pelas ruas até finalmente a atirarem no rio que corta a cidade. Uma ação direta inspirada na revolta iniciada em Minneapolis, Estados Unidos, após a morte violenta de George Floyd, um homem negro de 49 anos que foi asfixiado por um policial branco em uma abordagem.

Outros países como a França, México, Alemanha, África do Sul e Reino Unido aderiram às manifestações norte-americanas e reivindicaram a vida de pessoas negras nas ruas. No Brasil, país com a polícia que mais mata no mundo, organizações do movimento negro, assim como torcidas organizadas e trabalhadores precarizados, convocaram uma retomada popular das ruas gerando uma discussão intensa: ir ou não ir? É momento para aglomerações?

A preocupação é justa, afinal a curva de contágio por covid-19 segue crescente e, contra ela, só temos duas defesas: medidas de higiene básica e um isolamento social fraco de uma quarentena que de fato nunca começou e nem garantiu condições para que todos estivessem mesmo em casa. Entre os negros em luta, pesa o fato que a doença não é tão democrática quanto alguns fizeram parecer. Na verdade, a pandemia escancarou ainda mais as desigualdades sociais e raciais que estruturam nosso país.

A celebridade contando nos stories como passa o tempo em que está “parada” em casa não é a realidade do nosso país. Desempregados e trabalhadores informais não tiveram a chance de parar, mesmo com o auxílio emergencial – afinal, R$ 600 não paga sequer um aluguel em muitos dos centros urbanos brasileiros. Entregadores e motoristas de aplicativos, domésticas, camelôs e marreteiros, entre outros setores precarizados, não conheceram o home office e estão arriscando suas vidas diariamente nas ruas e transportes públicos para garantir o mínimo de sustento.

Quem não se arrisca para trabalhar, se arrisca para ajudar aqueles que não são assistidos – movimentos de favelas e campanhas de solidariedade nas periferias estão nas ruas para fazer a escuta e dar a assistência que o estado não dá. Ou seja, já há uma maioria de negra que permanece em risco, não isolada e ocupando as ruas pela necessidade. Como negar o grito a esse pessoal, principalmente ao lembrarmos que quem também não “parou” foram as forças militares?

Em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, a Polícia Militar metralhou uma casa em que estava João Pedro, atingido por um fuzil e assassinado aos 14 anos. Na mesma cidade, organizações que entregavam cestas básicas para moradores das favelas cariocas tiveram ações interrompidas por operações policiais. Em São Paulo, durante o mês de maio a polícia militar matou uma pessoa a cada 6 horas, em plena quarentena. Tudo isso acontecendo enquanto os Estados Unidos começaram a queimar na mão de manifestantes.

A verdade é que nunca houve um só momento da história do Brasil em que não estivesse ocorrendo um massacre. A própria “fundação” oficial do país anuncia um genocídio: se em 1500 cerca de 3 milhões de indígenas aqui estavam, 70 anos após  a invasão portuguesa esse número caiu mais da metade. Você deve achar que isso é coisa do passado, como as ligações de Edward Colston com a escravidão. Mas cabe lembrar que nunca houve um luto público por esses corpos que viraram quase que argamassa de cada centímetro quadrado desse país. Pelo contrário, muitas vezes até mesmo o luto privado têm sido interditado. Mães que precisam ouvir que a vida de seus filhos não são passíveis de serem lembradas porque ‘tinham antecedentes criminais’, logo precisavam morrer. Movimentos de favela que queimam, sim, as ruas, mas ninguém se importa, vibra ou põe no Instagram, afinal, as vidas perdidas que eles reclamam não eram assim tão importantes e nem internacionais.

É preciso então mudar os fatores desse discurso: não se está convocando o povo às ruas “apesar” dos mais de 35 mil mortos, mas sim porque mais de 35 mil pessoas morreram. Porque João Pedro morreu. Porque George Floyd morreu. Porque Amarildo e Cláudia Ferreira morreram. Porque desmantelaram o Quilombo de Palmares. Porque aqui a vida sempre valeu muito pouco. E porque é assim que o capitalismo organizou nossa sociedade: para matar determinados corpos.

A demonstrator holds a banner that reads in Portuguese stop the genocice of black youth during a  anti-fascist protest against racism, President Jair Bolsonaros government, and to defend democracy amid the Coronavirus pandemic (COVID-19), in Brasilia, Brazil, Sunday, June 7, 2020. (Photo by Andre Borges/NurPhoto via Getty Images)

Em Brasília, manifestante empunha cartaz “Pare o genocídio da juventude negra”, em protestos antirracistas e a favor da democracia, ocorridos em 7 de junho, em todo o país.

Foto: André Borges/NurPhoto via Getty Images

Ok, você entende, a causa é legítima, mas falta “organização” e estratégia – foi o que disseram, certo? Curiosamente, o povo é herói quando se organiza para entregar cestas básicas, mas é confundido com quem quer fazer ‘micareta’ ou tido como ‘irresponsável’ quando está organizado por seu luto público, por seu ódio e seus bastas. Ignora-se aí as diversas estratégias já utilizadas – organizar entregadores de aplicativo é uma delas, formar um cordão de advogados negros na linha de frente de um ato para vigiarem preceitos legais na abordagem policial, como ocorre no Rio de Janeiro, é outra.

A própria estátua rolando no rio inglês foi uma estratégia organizada – ação direta, tática ligada à desobediência civil, aos autonomistas e movimentos antifascistas, ‘coisa de branco’, ‘que obscurece o antirracismo’ irão dizer, mas que foi usada exatamente para botar no chão um símbolo da racionalidade colonial e escravista recheado do ‘humanismo’ e da generosidade liberal burguesa que já não aceitamos mais que seja a base de construção de nosso mundo. Se fosse uma estátua tombando por aqui, talvez surgisse alguém gritando “INFILTRADO” ou dizendo que isso ‘invalida a luta’ e irá ser usado para ‘justificar o endurecimento do regime’. A questão, amigo, é que o endurecimento já aconteceu e você nem viu.

O racismo é a questão- chave dessas insurgências porque está no centro da estrutura do capitalismo global desde seu surgimento.

O pânico de que infiltrados e vândalos possam dar vazão para um autogolpe de estado por parte de quem hoje ocupa o Planalto está aí e foi alimentado até pelo próprio idealizador da Força Nacional de Segurança, na tentativa de desmobilizar os atos do último domingo. Caímos nesse pânico, que muito os interessa, e assistimos delegacias e tribunais internacionais em chamas com a mesma disposição e prazer que criminaliza quem quebra a vidraça de um banco. As contradições financeiras em meio a pandemia é que deveriam ser imorais. Em vez disso, acreditamos que ser um ‘manifestante do bem’ que recrimina os ‘do mal’ irá fazer com que o governo perceba nossa superioridade moral, recuando com vergonha e pedindo perdão. Afinal, a quem interessa pacificar as ruas? Se esquece que as forças militares deste país jamais precisaram de motivos para golpear nossas vidas até a morte. O velho normal era insuportável, e o novo normal mal chegou e já não nos deixa respirar.

O clamor por ordem ou mesmo os que de forma oportunista argumentam pela necessidade de um “programa” para ir às ruas, mirando nas eleições municipais, não têm a percepção do quão urgente é dar vazão para esse luto público negado. Não percebem o quanto a narrativa de que ‘devemos mostrar respeito para sermos respeitados’ está valendo de um só lado há séculos. As notas de repúdio e as petições concentram e demonstram a existência de um desconforto, mas não se pode bafar os gritos daqueles que estão querendo também resolver seus problemas diretamente. Sem mediação e sem massagem.

Velar os corpos dessa grande vala chamada Brasil é um processo fundamental de promoção da memória política e uma pedra para a construção de um mundo onde nossa existência seja possível. Não é por coincidência que esse processo está sendo protagonizado pelo povo negro e apelar por um restabelecimento e respeito à ‘ordem’ significa novamente interditar esse luto e, por consequência, expulsar os enlutados das ruas.

Sabemos que ‘racismo estrutural’ se tornou hashtag para comentar reality show, mas a verdade é que o conceito fala sobre as bases em que foram construídos o nosso capital, o nosso mundo e a nossa ordem. Fala sobre as bases iluministas de John Locke e de outros que mudaram o mundo após enriquecerem com a escravidão. Fala sobre a lógica de direito individual, paz e ordem democrática que põe o negro na subalternidade, matando-o de bala, de fome e de doença, sob os aplausos de quem vai dizer que as coisas estão melhorando porque ligou a televisão e viu pessoas negras debatendo no canal que, por décadas, também financiou o massacre. O Black Lives Matter se iniciou no governo Obama: representatividade alguma calou o fato que eram e ainda são os corpos negros que estão morrendo.

O racismo é a questão-chave dessas insurgências porque está no centro da estrutura do capitalismo global desde seu surgimento. Fazer vidas negras importarem requer questionar e fazer afundar em nossos rios essas bases centrais, aqueles ‘benfeitores’, que fazem caridade às custas dos corpos alheios, e também os indiferentes.

O simbolismo de um traficante de escravos rolando rio abaixo em pleno território europeu é um dos gatilhos possíveis para que pensemos quais são os alicerces nacionais que estão no centro da necessidade de se ir às ruas mesmo na pandemia, tal qual um monumento no centro de uma cidade.

Aqui, as estátuas e monumentos são metáforas, mas caso você já esteja preocupado com a destruição e apagamento do patrimônio histórico, fique tranquilo. Talvez o Google possa ajudar a manter a memória viva.


@ali_wedderburn: A estátua de Edward Colson já foi realocada no Google Maps.

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Fonte: https://theintercept.com/2020/06/09/protestos-antirracistas-estatuas/
Se derrubássemos estátuas por aqui em protestos, nos chamariam de vândalos e não de heróis Se derrubássemos estátuas por aqui em protestos, nos chamariam de vândalos e não de heróis Reviewed by MeuSPY on junho 09, 2020 Rating: 5

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