Quatro histórias de vidas atravessadas pelo genocídio negro

Nota dos editores: Esta reportagem está em produção há mais de um ano. Foi fruto do trabalho de Martihene Oliveira, do Coletivo Sargento Perifa, que atua com comunicação comunitária no Córrego do Sargento, comunidade no bairro da Linha do Tiro, em Recife. Ela foi uma das selecionadas no nosso chamado de Bolsas para Repórteres Negros. Sua proposta partiu de sua própria trajetória: depois de ter um vizinho assassinado, Oliveira começou a se perguntar quantos pretos havia perdido na vida. Chegou ao número de 27. Então, resolveu repetir a pergunta a outras pessoas da comunidade.

Depois de meses de trabalho em apuração, redação e edição, a publicação estava prevista para o sábado, dia 28. Era, coincidentemente, a festa de aniversário dos dois anos de Coletivo Sargento Perifa, e havia atividades marcadas para o dia todo. Até que veio a chuva. A comemoração deu lugar a um trabalho intenso de ajudar os atingidos pela tragédia, que já matou 100 pessoas na região metropolitana de Recife.

“Quando comecei a ver as tragédias com a chuva, já fui ficando nervosa. Não tive reação. A ideia da reportagem era dar visibilidade para o povo, mas vendo toda aquela destruição eu não sabia por onde começar”, conta Oliveira. Ela tentava ligar para Raquel (leia abaixo a história dela), mas ninguém atendia. Depois, viria a descobrir que parte da casa de Raquel havia desmoronado. Não por causa de uma queda de barreira, como a que matou a mãe de Carol, outra personagem da história. A casa de Gabriel, 13 anos, também personagem do texto a seguir, quase foi atingida por um deslizamento.

Quase todas as vítimas das chuvas no Recife são negras. Não é coincidência. O genocídio negro, perpretado pela violência, pelo racismo ambiental ou pela negligência do poder público, não dá trégua.

Quando começou a produzir esse texto, Martihene Oliveira havia perdido 27 pessoas. Ao final, já eram 31.

 

No fim de janeiro, saí com Gabriel Félix, 13 anos, para fazer uma visita à Comunidade do Canal da Vovozinha, em Santo Amaro, no Recife, para fazer uma entrevista para essa reportagem. Aos 13 anos, sem estudar desde que a pandemia começou, Gabriel é o último morador de sua residência que frequentou a escola. Ele está atrasado, no 4º ano, mas aprende com o Coletivo Sargento Perifa, um veículo de jornalismo independente, o ofício de jornalista.

Fizemos fotos, colhemos informações e voltamos para casa. Na volta, ao passarmos pelo subúrbio recifense, enquanto o carro transitava pelas ruas entre um morro e outro, o menino observava as escadarias e refletia. De repente, ele aponta pela janela para um lugar e fala baixinho para que o motorista não escute:

– Tá vendo aquela escadaria ali?
– Sim – respondi.
– Faz uns quatro dias, tia. Eu tava passando naquela rua de bicicleta. Enquanto voltava daquele bico lá que faço vendendo açaí. Era por volta das 22h quando mataram um cara na minha frente e eu vi tudinho.
– Você viu?
– Sim. Foram quatro tiros.

Um minuto de silêncio e eu lembrei de mim. Esse tipo de coisa salta aos olhos dos meus amigos do luxo da zona sul recifense, mas entre a gente, da periferia, é a coisa mais comum de acontecer. Ninguém se espanta. Ousei continuar a conversa:

– Essa foi sua primeira experiência?
– Oxe, claro que não. Eu já vi várias mortes – afirmou, empolgado.
– Acredito. A minha primeira morte foi aos oito anos de idade, na frente de minha casa.
– A minha foi quando eu tinha três anos. No quintal de minha casa. Eu lembro que, quando vi, corri para o quintal da vizinha. Minha família mudou-se de lá depois disso.

Gabriel e eu somos apenas dois pretos que já perderam muita gente que conhecem e desconhecem em sua comunidade. Não falo nem dos pretos que a gente enxerga nos jornais policiais todos os dias. Falo dos nossos pretos de contato. Familiares, vizinhos, amigos de infância, comerciantes de nossa comunidade. Parar para contar quantos pretos eu já havia perdido na vida, dentro desses 30 anos de idade, me fez ter revolta de alma.

Quando comecei a pensar nessa pauta, ainda em 2020, eu já havia perdido 27 pessoas. Agora, já são 31, entre amigos de infância, parentes próximos e distantes, vizinhos, amigos da família, entre outros. Para a violência urbana, somente por arma de fogo, foram 17 pessoas. Para o feminicídio, quatro – desse grupo, duas amigas muito próximas, todas negras. Para a negligência médica, duas pessoas. Para a covid-19, oito são as que consigo contar.

Saber que você tem a cor que mais morre no país não é legal. A nossa cor predomina nas piores estatísticas, ainda que sejamos a raça majoritária do Brasil. País subdesenvolvido, carentes de políticas públicas, que define a nós negros como subraça, em um sistema camuflado pelo mito da democracia racial. Somos um país que vive como se isso fosse apenas a consequência de um erro antigo, a escravidão, e tem dificuldade para reconhecer que o problema é atual e persiste. O racismo mata de qualquer maneira.

‘Perder pessoas pela lei da natureza faz parte da vida. Perder pessoas por mortes provocadas ou evitáveis é rotina nas comunidades periféricas’.

Estamos entre os países que mais matam por arma de fogo. A violência armada é um dos maiores motores do genocídio negro, que é alimentado também pelas mãos que deveriam nos proteger, as da polícia. A corporação, por sua vez, tem seu próprio genocídio negro: os policiais negros são os que mais morrem (62,7%, contra 34,5% dos brancos abatidos).

Nas estatísticas mundiais do feminicídio, o Brasil está em 5º lugar. Três em cada cinco vítimas são negras. Ao todo, são 4,8 assassinatos de todos os tipos a cada 100 mil mulheres brasileiras – as negras são três em cada quatro vítimas.

Quando o assunto é saúde, a negligência e o racismo institucional aparecem na desigualdade de acesso e tratamento das raças ao Sistema Único de Saúde, o SUS, por exemplo. A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra mostra que 11,9% dos pacientes negros já se sentiram discriminados em relação ao atendimento médico. A população negra também foi proporcionalmente a mais afetada pela covid-19. Uma pesquisa realizada na PUC-Rio mostrou que a as chances de um paciente preto ou pardo analfabeto morrer de covid-19 são 3,8 vezes maiores que as de um paciente branco com ensino superior.

Os bairros de Linha do Tiro, Santo Amaro e São José, no Recife, são marcados pela violência urbana.

Com quase 15 mil habitantes, Linha do Tiro, onde fica a comunidade do Córrego do Sargento, tem 70,37% de negros entre seus moradores. Santo Amaro, onde fica a comunidade do Canal da Vovozinha, tem 63% de negros seus quase 28 mil habitantes. Já São José, onde está situada a comunidade da Linha Férrea, possui 8,6 mil habitantes – 70,57% são negros. A Linha Férrea, outra comunidade que visitei, é tão marginal que sequer tem endereço formal. Seus cidadãos são invisíveis para o IBGE.

Esses bairros são os atendidos pelo censo do Coletivo Sargento Perifa, que reúne 15 projetos que combatem o racismo, a desigualdade social e a violência contra a mulher. Escolhi esses bairros para conhecer histórias e conversar com outras pessoas negras para repetir a pergunta que fiz a mim mesma: quantos pretos você perdeu?

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Foto: Vitor Berard para o Intercept Brasil

Raquel da Silva, mulher preta, 52 anos, dona de casa, é moradora do Canal da Vovozinha, uma comunidade de cerca de 30 casebres de taipa em Santo Amaro, no Recife. Quando a chuva aparece, o canal transborda e apodrece o piso das residências, fazendo com que elas desmoronem sobre o canal que dá nome ao lugar. Raquel mora ali há mais de três décadas.

Além de enfrentar problemas de saúde e saneamento básico, ela tem sua vida marcada pela violência urbana. Perdeu a mãe, tios, três filhos, neto, vizinhos e amigos vitimados por armas de fogo. No Recife, o Relatório Anual do Instituto Fogo Cruzado contou 1.725 tiroteios em 2021. Uma média de cinco por dia, com 247 pessoas atingidas e 192 mortes.

O Brasil é o país que mais mata com armas de fogo no mundo, conforme o estudo Violência Armada e Racismo do Instituto Sou da Paz. Os negros somos 78% das vítimas.

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Foto: Vitor Berard para o Intercept Brasil

Carolina da Silva, mulher preta, 25 anos, dona de casa, é moradora da comunidade do Córrego do Sargento, também no bairro da Linha do Tiro, zona norte do Recife. Ali vivem 180 famílias, conforme o censo 2021 do Coletivo Sargento Perifa – não há dados oficiais. Em 2010, aos 13 anos de idade e grávida de seu segundo filho, Carolina viu sua mãe, usuária de drogas, seu padrasto e suas três irmãs morrerem em um deslizamento de barreira. Meses antes, ela havia presenciado o suicídio de um parente dentro de casa.

Em 2018, Diogo, o pai de seus quatro filhos, foi levado em um carro para ser morto – até hoje não encontraram o corpo. Em 2020, seu pai foi assassinado. Além das perdas de seus entes queridos, Carolina convive cotidianamente com notícias das mortes de seus vizinhos, amigos de infância, além dos relatos em jornais sobre negros conhecidos assassinados.

As mortes quase sempre têm relação com o tráfico de drogas. Sua mãe havia recebido indenização da prefeitura para deixar sua residência de risco – mas, por causa do vício, gastou o dinheiro e voltou a ocupar o lugar. Linha do Tiro é uma das 13.151 favelas e palafitas do Brasil, conjuntos de habitações precárias, desprovidas de infraestrutura, localizadas em morros, às margens de rios ou em áreas alagadiças.

Duas a cada três pessoas que vivem nas favelas e palafitas brasileiras – 67% do total – são negras, segundo o estudo “Economia das Favelas – Renda e Consumo nas Favelas Brasileiras”, desenvolvido pelos institutos Data Favela e Locomotiva e encomendado pela Comunidade Door.

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Foto: Vitor Berard para o Intercept Brasil

Dário Santana, homem preto, 33 anos, é conselheiro tutelar e morador do Córrego do Sargento. Ele consegue contar mais de 20 perdas de pretos para a violência e o descaso. Para a falta de acesso a tratamentos de saúde e a atendimento adequados, Dário perdeu o avô, a irmã e o filho. Sua irmã, Daniele Santana, mulher preta de 34 anos, faz parte da lista dos mais de 600 mil mortos pela covid-19 no Brasil.

Negros foram a parcela da população mais atingida pela pandemia: a burocratização do acesso à saúde, o fato de não poderem aderir ao privilégio do isolamento social, a falta de saneamento básico adequado e o desprezo do governo pelo SUS são algumas das razões para isso. O mesmo destino teve Aloisio de Santana, 83 anos, avô de Dário, que morreu por negligência médica ao receber tardiamente o diagnóstico de câncer de próstata.

Dário também teria um filho, que levaria seu mesmo nome. Mas, após nove meses de espera, a criança morreu na sala de parto, por negligência da equipe médica que forçou por horas um parto normal.

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Foto: Vitor Berard para o Intercept Brasil

O meu nome é Martihene Oliveira. Tenho 32 anos. Sou jornalista e idealizadora do Coletivo de Mídia Independente Sargento Perifa. Por causa do racismo, escrevi o livro-reportagem “Urubu Marrom – Relatos de uma jornalista da Favela”, que aborda a realidade do racismo estrutural e suas variadas nuances.

Após a perda de mais um amigo, vítima de arma de fogo, resolvi contar quantas pessoas já havia perdido e constatei que perdi 27 pessoas para a violência urbana, a negligência médica e o feminicídio, entre outras causas que fogem do curso comum da vida de um ser humano. Mortes precoces de amigos, familiares e conhecidos.

Esse incômodo fez com que eu repetisse a mesma pergunta para outras pessoas: Quantos pretos você perdeu?

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Fonte: https://theintercept.com/2022/06/02/quantos-pretos-voce-perdeu/
Quatro histórias de vidas atravessadas pelo genocídio negro Quatro histórias de vidas atravessadas pelo genocídio negro Reviewed by MeuSPY on junho 02, 2022 Rating: 5

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